segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O fascismo ronda o Brasil em 2014 – Por Frei Betto

Ao votar este ano, reflita se por acaso você estará plantando uma semente do fascismo ou colaborando para extirpá-la.

Jean-Marie le Pen, líder da direita francesa, sugeriu deter o surto demográfico na África e estancar o fluxo migratório de africanos rumo à Europa enviando, àquele sofrido continente, “o senhor Ebola”, uma referência diabólica ao vírus mais perigoso que a humanidade conhece. Le Pen fez um convite ao extermínio.

O ex-presidente francês Nicolas Sarkozy propôs a suspensão do Tratado de Schengen, que defende a livre circulação de pessoas entre trinta países europeus. Já a livre circulação do capital não encontra barreiras no mundo… E nas eleições de 25 de maio a extrema-direita europeia aumentou o número de seus representantes no Parlamento Europeu.

A queda do Muro de Berlim soterrou as utopias libertárias. A esquerda europeia foi cooptada pelo neoliberalismo e, hoje, frente a crise que abate o Velho Mundo, não há nenhuma força política significativa capaz de apresentar uma saída ao capitalismo.

Aqui no Brasil nenhum partido considerado progressista aponta, hoje, um futuro alternativo a esse sistema que só aprofunda, neste pequeno planeta onde nos é dado desfrutar do milagre da vida, a desigualdade social e a exclusão.

Caminha-se de novo para o fascismo? Luis Britto García, escritor venezuelano, frisa que uma das características marcantes do fascismo é a estreita cumplicidade entre o grande capital e o Estado. Este só deve intervir na economia, como apregoava Margareth Thatcher, quando se trata de favorecer os mais ricos. Aliás, como fazem Obama e o FMI desde 2008, ao se desencadear a crise financeira que condena ao desemprego, atualmente, 26 milhões de europeus, a maioria jovens.

O fascismo nega a luta de classes, mas atua como braço armado da elite. Prova disso foi o golpe militar de 1964 no Brasil. Sua tática consiste em aterrorizar a classe média e induzi-la a trocar a liberdade pela segurança, ansiosa por um “messias” (um exército, um Hitler, um ditador) capaz de salvá-la da ameaça.

A classe média adora curtir a ilusão de que é candidata a integrar a elite embora, por enquanto, viaje na classe executiva. Porém, acredita que, em breve, passará à primeira classe… E repudia a possibilidade de viajar na classe econômica.

Por isso, ela se sente sumamente incomodada ao ver os aeroportos repletos de pessoas das classes C e D, como ocorre hoje no Brasil, e não suporta esbarrar com o pessoal da periferia nos nobres corredores dos shopping-centers. Enfim, odeia se olhar no espelho…

O fascismo é racista. Hitler odiava judeus, comunistas e homossexuais, e defendia a superioridade da “raça ariana”. Mussolini massacrou líbios e abissínios (etíopes), e planejou sacrificar meio milhão de eslavos “bárbaros e inferiores” em favor de cinquenta mil italianos “superiores”…

O fascismo se apresenta como progressista. Mussolini, que chegou a trabalhar com Gramsci, se dizia socialista, e o partido de Hitler se chamava Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido como Partido Nazista (de Nationalsozialist).

Os fascistas se apropriam de símbolos libertários, como a cruz gamada que, no Oriente, representa a vida e a boa fortuna. No Brasil, militares e adeptos da quartelada de 1964 a denominavam “Revolução”.

O fascismo é religioso. Mussolini teve suas tropas abençoadas pelo papa quando enviadas à Segunda Guerra. Pio XII nunca denunciou os crimes de Hitler. Franco, na Espanha, e Pinochet, no Chile, mereceram bênçãos especiais da Igreja Católica.

O fascismo é misógino. O líder fascista jamais aparece ao lado de sua mulher. Como dizia Hitler, às mulheres fica reservado a tríade Kirche, Kuche e Kinder (igreja, cozinha e criança).

O fascismo é anti-intelectual. Odeia a cultura. “Quando ouço falar de cultura, saco a pistola”, dizia Goering, braço direito de Hitler. Quase todas as vanguardas culturais do século XX foram progressistas:expressionismo, dadaísmo, surrealismo, construtivismo, cubismo, existencialismo. Os fascistas as consideravam “arte degenerada”.

O fascismo não cria, recicla. Só se fixa no passado, um passado imaginário, idílico, como as “viúvas” da ditadura do Brasil, que se queixam das manifestações e greves, e exalam nostalgia pelo tempo dos militares, quando “havia ordem e progresso”. Sim, havia a paz dos cemitérios… assegurada pela férrea censura, que impedia a opinião pública de saber o que de fato ocorria no país.

O fascismo é necrófilo. Assassinou Vladimir Herzog e frei Tito de Alencar Lima; encarcerou Gramsci e madre Maurina Borges; repudiou Picasso e os teatros Arena e Oficina; fuzilou García Lorca, Victor Jara, Marighella e Lamarca; e fez desaparecer Walter Benjamin e Tenório Júnior.

Ao votar este ano, reflita se por acaso você estará plantando uma semente do fascismo ou colaborando para extirpá-la.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

"Toda prisão no Brasil é ilegal. Porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal "

Juiz da Vara de Execuções Penais no Amazonas e doutorando em Criminologia pela USP, membro da Associação de Juízes para a Democracia e da LEAP-Low Enforcement against Proibition (Agentes da Lei contra a proibição das drogas) fala do sistema carcerário brasileiro.

Causa Operária: Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o sistema carcerário no Brasil é um dos mais brutais no mundo e o que mais cresce. Como você vê a situação dos presos hoje no Brasil?

Luís Carlos Valois: É engraçado que cada instituição coloca a culpa na outra, o poder judiciário coloca a culpa no poder executivo, que coloca a culpa no legislativo e cada um fica empurrando o problema para o outro. O executivo achando que o problema é do legislativo que cria leis cada vez mais punitivas e ações cada vez mais severas. O judiciário prende cada vez mais e não olha a situação específica de cada cidadão que está sendo preso. A tendência é cada vez dar penas maiores e prender cada vez mais. O executivo constrói penitenciárias muito ruins, mas constrói. Não em número suficiente, mas constrói. E acha que o papel dele é apenas esse. Então, essa cultura punitivista na nossa sociedade é enraizada tanto no executivo como no legislativo e judiciário. Essa é a primeira causa de termos um sistema penitenciário superlotado e desumano. A segunda causa mais emergente atualmente é a questão da proibição do entorpecente. Existem estados brasileiros onde mais de 50% dos presos são envolvidos com drogas. Ou seja, você pune uma pessoa envolvida com entorpecente que é um ato praticado consensualmente, isto é, uma pessoa comprou e outra vendeu, prática inclusive estimulada por uma sociedade capitalista, quer dizer, consumir, comprar e vender é algo estimulado pela sociedade. Mas você pune exclusivamente os pobres, que encontram um caminho de sobrevivência nesse tipo de comércio, uma sobrevivência com condições mais dignas. E prende também os pobres que consomem, porque os ricos que consomem não são presos. Os ricos que têm grande quantidade sempre são usuários e os pobres são sempre traficantes. Quer dizer, já começa daí uma justiça elitista que está prendendo os pobres em razão de uma atividade estimulada pelo próprio sistema capitalista.


Causa Operária: A superlotação dos presídios chegou a um ponto que, no estado do Espírito Santo, foram utilizados contêineres como celas. Como você avalia a questão dos direitos humanos dentro dos presídios?

Luís Carlos Valois: Inclusive essa denúncia do estado do Espirito Santo foi feita pelo professor Sérgio Salomão Shecaira, professor da USP, quando presidente do Conselho Nacional de Política Penitenciária. É verdade, cada vez mais não existe local para prender. Temos um déficit de vagas, além de termos centenas e centenas de mandatos de prisão na rua para serem cumpridos. Hoje em dia há falta de interesse em investir no sistema; qual é o investimento que há nesse sistema a não ser o de criar vaga? E o que a gente quer? Um depósito de pessoas? Se o sistema penitenciário for apenas isso, vamos continuar criando vagas em um depósito sujo e imundo, como temos feito durante toda a história. Não temos investimento de pessoal, de melhoria de salário dos técnicos e dos agentes penitenciários, de condições de trabalho, de humanização do sistema. E esse investimento de criar vaga vem da cultura do “prender”. Note-se que não basta culpar apenas o sistema, porque a própria sociedade aceita esse discurso punitivista.

Causa Operária: Segundo as estatísticas, mais de 1/3 da população carcerária tem HIV. Porque o índice é tão alto entre essa população?

Luís Carlos Valois: Tenho 20 anos de trabalho com presídios e posso afirmar que todas as medidas tomadas em favor da prisão são paliativas. Às vezes um governo de um estado constrói um “hopistalzinho” melhor, mas não passa disso. A instituição prisional em si está falida, prisão não é solução pra nada. Preso perigoso é 5% dos que estão no sistema penitenciário. Na minha opinião, ao restante poderia se pensar numa outra solução não encarceradora. Porque a maioria dos crimes são pequenos furtos e entorpecentes. Tem estado brasileiro que chega a ser 70% de presos por entorpecentes. Além disso, há a cifra negra, ou seja, a quantidade de crimes que acontecem e não são sequer denunciados ou investigados. Apenas 1% do total de crimes chega a ser punido, ou seja, vivemos em um “faz de conta” para satisfazer uma parcela da população, para parecer que o Estado está fazendo alguma coisa pela segurança pública. Com relação aos doentes e às drogas há uma incoerência ainda maior, porque você prende o cidadão na penitenciária por vender droga, por exemplo, e lá ele encontra à venda cocaína, maconha etc. O sistema de saúde penitenciário sempre foi um remendo. Quando há um sistema de saúde em algum estado que atua de forma melhor é em uma ou outra penitenciária, e isso acontece só por seis meses. Depois tudo é abandonado. A prisão é algo tão incoerente que seus administradores se perdem nessa irracionalidade. É sem sentindo você prender uma pessoa para depois querer que ela viva melhor em sociedade. A prisão em si é paradoxal, é uma estrutura corroída. Todo o sistema prisional, de saúde, o de infraestrutura vai ser sempre uma medida paliativa. Nem nos EUA, nem na Inglaterra, nem na Holanda, em nenhum lugar prisão funciona como se idealiza.


Causa Operária: Então a maioria da população carcerária é de pobres e negros?

Luís Carlos Valois: A maioria dos presos são pobres e negros. E com relação às mulheres, se no caso dos homens até 70% dos presos são entorpecentes, no caso das mulheres esse número pode chegar a 90%. Se pudéssemos iniciar uma política contra a criminalização de entorpecente, como eu penso que deveríamos fazer, nós teríamos menos de 50% da população carcerária masculina e menos de 90% da feminina. A população carcerária feminina é feita basicamente dessa injustiça social de prender a mãe, a esposa que fica em casa. Quando a polícia invade uma casa ela não quer saber de quem é a droga, ela prende quem está dentro da casa. E a polícia tende a achar droga mesmo se não tiver, pois se não achar droga depois de uma invasão de domicílio, o próprio policial pode ser punido por abuso de autoridade. Então, a tendência de achar a droga no barraco e na periferia é muito grande depois de uma invasão. Nesse caso a pessoa que fica em casa, que é a mulher, vai ser presa. Se os policiais invadem uma casa às duas horas da tarde e o dono da droga não estiver lá, é a mãe dele quem vai ser presa. Ha vários casos de mãe e esposa presas porque estavam numa casa onde existiam drogas. Essa mulher vai ser presa em flagrante e como traficante. Depois, quando é relaxado um flagrante desses, se for, ela já ficou presa meses ou anos. Todas são pobres. E a maioria negra. Antigamente todo mundo dizia que para ser preso tinha que ter os 3 Ps: “pobre, preto e puta”. Hoje em dia tem que ser MA: “miserável e azarado”. É um sorteio. A polícia seleciona o traficante na rua e essa seleção recai sobre o pobre. Isso sem contar a questão do abandono, porque a mulher normalmente é abandonada quando está presa. O homem quando está preso tem a visita da mãe, da namorada, da esposa. Já na penitenciária feminina é muito difícil ver um homem indo visitar sua ex-companheira. Ela normalmente é abandonada. E a penitenciária feminina tem mais um agravante: foi feita para homens. Ela masculiniza. A prisão é uma agressão três vezes maior para a mulher. Faz a mulher se vestir como um homem, entrar numa cela de homem e sofrer a tortura do encarceramento como homem. A mulher não foi feita pra ser tratada como homem, numa penitenciária feita para homens. Tem necessidades específicas.


Causa Operária: O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, declarou que “preferiria morrer a ser preso em uma penitenciária brasileira”. Qual a probabilidade de reintegração na sociedade? 

Luís Carlos Valois: Meu trabalho de mestrado na Universidade de São Paulo, orientado pelo Prof. Alvino Augusto de Sá, foi sobre essa questão da ressocialização. Muitos tribunais usam o termo “ressocializar” como termo encarcerador. O tema ressocialização é muito perigoso porque é legitimador da prisão. Quando eu digo que a prisão vai servir para alguma coisa eu estou legitimando essa atividade punitiva. Nenhuma prisão no mundo ressocializa ninguém. A pessoa pode se ressocializar sem prisão, com prisão e apesar da prisão. O discurso ressocializador está sendo usado para encarcerar. Na minha pesquisa, em cada 100 acórdãos que usavam o termo ressocialização, 60 usavam para encarcerar, aumentar ou agravar pena, mesmo todos sabendo que a prisão não ressocializa. Como eu posso dizer para um cidadão que eu vou colocá-lo na prisão para ressocializá-lo? Soa até ridículo. Não podemos punir dessa forma, com um argumento desfeito pela realidade. Se chegássemos ao ponto de dizer: “olha, a prisão não é para ressocializar, é para te prender pelo que você fez, para te punir”, seria um grande avanço; contanto que levássemos em consideração o princípio constitucional, fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade humana. O mínimo que se deveria fazer era respeitar a dignidade da pessoa humana. Isso já estaria ótimo. A gente não respeita nem a dignidade, quanto mais possibilitar a ressocialização de alguém. O que o ministro fez foi ótimo, reconhecer que a prisão brasileira não serve para nada de útil. Se ele conhecesse as outras iria ver que nenhuma serve. Mas o que ele vai fazer agora? Ele é o ministro da justiça, depois dessa declaração ele tem o compromisso moral de deixar o cargo dele ou fazer alguma coisa.


Causa Operária: Temos assistido em São Paulo a um verdadeiro massacre da população mais pobre. Policias chegaram a atear fogo em um garoto após ver que ele já tinha passagem pela policia. Como você vê essa punição, a execução por policias?

Luís Carlos Valois: A pessoa que já foi presa sempre vai estar estigmatizada. Nunca mais vai poder ser ela mesma, nunca mais vai ser livre. Com muita dificuldade ela pode conseguir trabalho, ruim e ganhando pouquíssimo, mas vai estar estigmatizada para sempre. A prisão além de não ressocializar ela estigmatiza. A prisão deixa uma marca para sempre. O que está acontecendo em São Paulo ultimamente é somente a visibilidade maior do que já estava acontecendo há muito tempo. A polícia sempre matou, se a policia está matando de forma mais cruel é porque a violência também está mais cruel. Isso é só uma evolução de muitos anos. O PCC e essas outras organizações de presos nasceram por pura e simples inoperância do Estado. Pense numa escola, numa sala de adolescentes, diga para eles que não vão mais ter recreio, que vão ter que ficar presos em sala de aula por mais tempo além do horário normal, eles vão se rebelar, vão se reunir, faz parte da natureza humana. Essas comunidades carcerárias abandonadas há anos nada mais fizeram do que se organizarem. A gente imagina o crime organizado formado de ricos, no estilo mafioso. Mas o crime organizado é miserável, porque a penitenciária só tem pobres. A polícia não invade um apartamento nos Jardins, mas sim a favela, e tem drogas nos Jardins. O crime organizado só tem esse nome porque o Estado mesmo é cada vez mais desorganizado, incapaz de funcionar como ente que deve promover justiça.


Causa Operária: Como vê a atuação do PCC dentro das penitenciárias brasileiras?

Luís Carlos Valois: Para um juiz eles nunca vão me dizer a forma exata como atuam. Apesar de frequentar o sistema penitenciário, tudo é mais difícil para um juiz perceber. Procuro ser o mais justo possível e tento fazer uma reflexão sobre a violência e ilegalidade do cárcere. Obviamente que eles estão se organizando. Claro que na penitenciária tem celular e drogas. A penitenciária só é regime fechado para a sociedade que quer imaginar estar livre. Eu já tive com presos sob minha jurisdição que foram mandados para penitenciárias federais e quando voltaram me disseram: “Doutor, os presos pobres que vão para essas penitenciárias acabam sendo cooptados pelo PCC. Porque o PCC paga passagem dos familiares para irem visitá-los e paga a manutenção desses familiares.” Então, nem nas penitenciárias federais ditas como de alta segurança é evitado contato, mas sim está fomentando o crescimento dessas organizações de presos. Não é muito o que posso dizer da atuação deles, só o que parece evidente.


Causa Operária: O projeto de reforma do Código Penal prevê a “criação” de cerca de 200 novos crimes, ou seja, qualquer cidadão poderá ir para a prisão. Como você avalia e o que está por trás dessa nova reformulação do Código Penal?

Luís Carlos Valois: Obviamente que o novo código penal está sendo organizado e escrito no embalo da mídia e da cultura punitiva que a gente vive. Não só cria mais crimes como torna muito mais rigorosas as penas da maioria dos crimes. Com esse código penal com certeza vamos ter o dobro da população carcerária nos próximos dez anos. Se hoje é possível colocar 40 pessoas numa cela em que caberiam no máximo dez, e temos mais de meio milhão de presos, imagina depois dessa reformulação. No Amazonas há uma cela assim, feita para dez que possui 40; um dorme em cima do outro, tem rato, barata, é imunda, e toda vez que falo de prisão vou repetir a imundície que é. Esse código penal, parece claro, é para inglês ver, é inaplicável se você olhar para a realidade. Infelizmente o direito não lida muito bem com a realidade. Os juristas escrevem livros de direito achando que o direito é uma ciência independente da realidade, tipo, o cara vendeu entorpecente tem que ser preso; furtou um celular tem que ser preso. Tudo é prisão. Como se a prisão que está na lei de execução penal existisse de fato. Só que aquela prisão que está na lei não existe e o profissional do direito não percebe isso. Ele trabalha com papel; crime tal tem pena tal, e esta primordialmente é a prisão. Ele não percebe que essa prisão do papel não existe. Toda prisão no Brasil é ilegal. Porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal.


Causa Operária: Qual a solução que o senhor enxerga para o sistema carcerário brasileiro?

Luís Carlos Valois: Eu antecipei um pouco essa resposta. Como deu para perceber eu não acredito na prisão. Mesmo que você tenha um psicopata, na prisão ele vai ficar pior e sair pior de lá. A prisão não é solução para nada. Não é resposta nem para os piores dos criminosos. Mas é utópico pensar no fim da prisão. Ninguém iria aceitar. Eu sou o juiz da vara de execução e acho que toda prisão é ilegal. Mas se eu chego em minha comarca e solto todos os presos quem vai ser preso sou eu. Teve um juiz em Minas Gerais que soltou todos os presos, porque a prisão estava lotada e era inviável, isso tudo comprovado por perícia; ele foi afastado do cargo. Eu sou juiz, mas tenho filho para criar, não posso perder meu emprego. Sei que a prisão onde mantenho os condenados é ilegal, mas o sistema não aceita que eu diga ou aja de acordo com o meu pensamento. Uma maneira de lidar com esse encarceramento em massa é adotar a política contra a criminalização da droga, defendê-la, como tenho feito. Nem falo em descriminalização, porque quando você fala em descriminalização você está dando como certa a criminalização, e quem foi que disse que criminalizar entorpecentes é certo? Por isso falo em ser contra a criminalização. Ninguém nunca discutiu a razão pela qual foram criminalizados os entorpecentes, aliás, só alguns deles. Discutir descriminalização não é correto, tem que se discutir por que se criminalizou. Eu sou contra a criminalização porque acho a criminalização prejudicial para a sociedade e irracional. Você colocar uma pessoa que vende entorpecentes num local onde se vende entorpecentes é incoerente. Tornar a justiça incoerente e sem capacidade de diálogo é tornar a própria justiça, mais do que injusta, incapaz de realizar justiça.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O velho pelo velhíssimo


Estamos à beira de eleições que, muito provavelmente, irão definir, a médio prazo, o futuro do Brasil. 

A releição de Dilma significará uma consolidação de programas sociais e econômicos que estão dando certo. Se, todavia, um dos dois outros principais candidatos - Aécio Neves ou Marina Silva - forem eleitos, certamente daremos um tiro em nosso próprio pé (e das futuras gerações).

Aécio e Marina representam o que há de mais retrógrado na maneira de se fazer política, no Brasil. Nada de inovações: tanto um quanto outro estão alinhados com a agenda neoliberal que afundou o Brasil (especialmente na era FHC) e dezenas de outros países em um verdadeiro caos social. A doutrina que saiu das entranhas da Universidade de Chicago, e que teve como sua primeira cobaia o Chile, durante a ditadura de Pinochet, tem seus Chicago Boys por aqui também.

Depois da trágica morte de Eduardo Campos, Marina Silva, sua "sucessora", que, diga-se, há muito tempo prega renovação política no país, é, na verdade, portadora de um conservadorismo e de um alinhamento com os interesses das elites econômicas, que deixariam seu ex-companheiro de lutas, Chico Mendes, de cabelos em pé.

A seguir, interessante reflexão de Lino Bocchini da Revista Carta Capital:


7 motivos pelos quais Marina Silva não representa a “nova política”
Se a sua intenção este ano é votar em uma "nova forma de fazer política", leia este texto antes de encarar a urna eletrônica

por Lino Bocchini — publicado 27/08/2014 14:10, última modificação 27/08/2014 15:18


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Neca Setúbal, herdeira do Itaú e coordenadora do programa de governo de Marina Silva, a candidata e seu vice, Beto Albuquerque
É comum eleitores justificarem o voto em Marina Silva para presidente nas Eleições 2014 afirmando que ela representaria uma “nova forma de fazer política”. Abaixo, sete razões pelas quais essa afirmação não faz sentido:
1. Marina Silva virou candidata fazendo uma aliança de ocasião. Marina abandonou o PT para ser candidata a presidente pelo PV. Desentendeu-se também com o novo partido e saiu para fundar a Rede -- e ser novamente candidata a presidente. Não conseguiu apoio suficiente e, no último dia do prazo legal, com a ameaça de ficar de fora da eleição, filiou-se ao PSB. Os dois lados assumem que a aliança é puramente eleitoral e será desfeita assim que a Rede for criada. Ou seja: sua candidatura nasce de uma necessidade clara (ser candidata), sem base alguma em propostas ou ideologia. Velha política em estado puro.
2. A chapa de Marina Silva está coligada com o que de mais atrasado existe na política. Em São Paulo, o PSB apoia a reeleição de Geraldo Alckmin, e é inclusive o partido de seu candidato a vice, Márcio França. No Paraná, apoia o também tucano Beto Richa, famoso por censurar blogs e pesquisas. A estratégia de “preservá-la” de tais palanques nada mais é do que isso, uma estratégia. Seu vice, seu partido, seus apoiadores próximos, seus financiadores e sua equipe estão a serviço de tais candidatos. Seu vice, Beto Albuquerque, aliás, é historicamente ligado ao agronegócio. Tudo normal, necessário até. Mas não é “nova política”.
3. As escolhas econômicas de Marina Silva são ainda mais conservadoras que as de Aécio Neves. A campanha de Marina é a que defende de forma mais contundente a independência do Banco Central. Na prática, isso significa deixar na mão do mercado a função de regular a si próprio. Nesse modelo, a política econômica fica nas mãos dos banqueiros, e não com o governo eleito pela população. Nem Aécio Neves é tão contundente em seu neoliberalismo. Os mentores de sua política econômica (futuros ministros?) são dois nomes do governo Fernando Henrique: Eduardo Giannetti da Fonseca (ex-secretário de comércio exterior) e André Lara Rezende, ex-presidente do BNDES e um dos líderes da política de privatizações de FHC. Algum problema? Para quem gosta, nenhum. Não é, contudo, “uma nova forma de se fazer política”.
4. O plano de governo de Marina Silva é feito por megaempresários bilionários. Sua coordenadora de programa de governo e principal arrecadadora de fundos é Maria Alice Setúbal, filha de Olavo Setúbal e acionista do Itaú. Outro parceiro antigo é Guilherme Leal. O sócio da Natura foi seu candidato a vice e um grande doador financeiro individual em 2010. A proximidade ainda mais explícita no debate da Band desta terça-feira. Para defendê-los, Marina chegou a comparar Neca, herdeira do maior banco do Brasil, com um lucro líquido de mais de R$ 9,3 bilhões no primeiro semestre, ao líder seringueiro Chico Mendes, que morreu pobre, assassinado com tiros de escopeta nos fundos de sua casa em Xapuri (AC) em dezembro de 1988. Devemos ter ojeriza dos muito ricos? Claro que não. Deixar o programa de governo a cargo de bilionários, contudo, não é exatamente algo inovador.
5. Marina Silva tem posições conservadoras em relação a gays, drogas e aborto. O discurso ensaiado vem se sofisticando, mas é grande a coleção de vídeos e entrevistas da ex-senadora nas quais ela se alinha aos mais fundamentalistas dogmas evangélicos. Devota da Assembleia de Deus, Marina já colocou-se diversas vezes contra o casamento gay, contra o aborto mesmo nos casos definidos por lei, contra a pesquisa com células-tronco e contra qualquer flexibilização na legislação das drogas. Nesses temas, a sua posição é a mais conservadora dentre os três principais postulantes à Presidência.
6. Marina Silva usa o marketing político convencional. Como qualquer candidato convencional, Marina tem uma estrutura robusta e profissionalizada de marketing. É defendida por uma assessoria de imprensa forte, age guiada por pesquisas qualitativas, ouve marqueteiros, publicitários e consultores de imagem. A grande diferença é que Marina usa sua equipe de marketing justamente para passar a imagem de não ter uma equipe de marketing.
7. Marina Silva mente ao negar a política. A cada vez que nega qualquer um dos pontos descritos acima, a candidata falta com a verdade. Ou, de forma mais clara: ela mente. E faz isso diariamente, como boa parte dos políticos dos quais diz ser diferente.
Há algum mal no uso de elementos da política tradicional? Nenhum. Dentro do atual sistema político, é assim que as coisas funcionam. E é bom para a democracia que pessoas com ideias diferentes conversem e cheguem a acordos sobre determinados pontos. Isso só vai mudar com uma reforma política para valer, algo que ainda não se sabe quando, como e se de fato será feita no Brasil.
Aécio tem objetivos claros. Quer resgatar as bandeiras históricas do PSDB, fala em enxugamento do Estado, moralização da máquina pública, melhora da economia e o fim do que considera um assistencialismo com a população mais pobre. Dilma também faz política calcada em propósitos claros: manter e aprofundar o conjunto de medidas do governo petista que estão reduzindo a desigualdade social no País.
Se você, entretanto, não gosta da plataforma de Dilma ou da de Aécio e quer fortalecer “uma nova forma de fazer política”, esqueça Marina e ouça Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV) com mais atenção.
De Marina Silva, espere tudo menos a tal “nova forma de fazer política”. Até agora a sua principal e quase que única proposta é negar o que faz diariamente: política.

sábado, 3 de maio de 2014

“A sociedade terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial”

A desmilitarização da polícia, uma das bandeiras das jornadas de junho, sempre foi uma das principais de Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e antropólogo.

Nesta entrevista, o autor de mais de 20 livros, entre eles Tudo ou Nada, Elite da Tropa e Cabeça de Porco, explica o motivo de sua defesa, e aponta que este é apenas o primeiro passo para o caminho árduo de construção de uma sociedade “efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos”. Luiz Eduardo foi um dos principais elaboradores da PEC-51 – recentemente apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ) – que visa, segundo ele, reformar o modelo policial.

Nós temos uma polícia e um corpo de bombeiros que são militar. Você há muito tempo defende a desmilitarização. Por quê?

Luiz Eduardo Soares – Considero a desmilitarização das polícias indispensável e a dos bombeiros absolutamente conveniente, ainda que essa mudança não seja suficiente. Mesmo porque nossas polícias civis não têm menos problemas do que as militares. Em primeiro lugar, é preciso saber o que significa, para uma polícia, ser militar. No artigo 144 da Constituição, significa obrigá-la a copiar a organização do Exército, do qual ela é considerada força reserva. O melhor  formato organizacional é aquele que melhor permite à instituição cumprir suas finalidades.

Finalidades diferentes requerem estruturas organizacionais distintas. Portanto, só faria sentido reproduzir na polícia o formato do Exército se as finalidades de ambas as instituições fossem as mesmas. Não é o que diz a Constituição. O objetivo do Exército é defender o território e a soberania nacionais. Para cumprir essa função, tem de organizar-se para realizar o pronto emprego, ou seja, mobilizar grandes contingentes humanos e materiais com máxima celeridade e rigorosa observância das ordens proferidas pelo comando. Precisa preparar-se para, no limite, fazer a guerra. Pronto emprego exige centralização decisória, hierarquia rígida e estrutura fortemente verticalizada. Nada disso se aplica à Polícia Militar. Seu papel é garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força. Segurança é um bem público que deve ser provido universalmente e com equidade pelos profissionais incumbidos de prestar esse serviço à cidadania. Os confrontos armados são as únicas situações em que alguma semelhança poderia haver com o Exército, ainda que mesmo nesses casos as diferenças sejam marcantes. Mas eles correspondem a menos de 1% das atividades que envolvem as PMs. A imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia ostensiva são melhor resolvidos com a adoção de estratégias incompatíveis com a estrutura organizacional militar. Refiro-me ao policiamento comunitário, os nomes variam conforme o país.

E em que sentido o policiamento comunitário distingue-se das ações militares?

Essa metodologia é inteiramente distinta do “pronto emprego” e implica o seguinte: o ou a policial na rua não se limita a cumprir ordens, fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento ditado pelo estado maior da corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele ou ela é a profissional responsável por agir como gestora local da segurança pública, o que significa, graças a uma educação interdisciplinar e altamente qualificada: diagnosticar os problemas e identificar as prioridades, em diálogo com a comunidade, mas sem reproduzir seus preconceitos; planejar ações, mobilizando iniciativas multissetoriais do poder público, na perspectiva de prevenir e contando com o auxílio da comunidade, o que se obtém respeitando-a. Para que haja esse tipo de atuação, é imprescindível valorizar quem atua na ponta, dotando essa pessoa dos meios de comunicação para convocar apoio e de autoridade para decidir. Há sempre supervisão e interconexão, mas é preciso que haja, sobretudo, autonomia para a criatividade e a adaptação plástica a circunstâncias que tendem a ser específicas aos locais e aos momentos. Qualquer profissional que atua na ponta, sensível à complexidade da segurança pública, ao caráter multidimensional dos problemas e das soluções, ou seja, qualquer policial que atue como gestor ou gestora local da segurança pública, deve dialogar, evitar a judicialização sempre que possível, mediar conflitos, orientar-se pela prevenção e buscar acima de tudo garantir os direitos dos cidadãos. Dependendo do tipo de problema, mais importante do que uma prisão e uma abordagem posterior ao evento problemático, pode ser muito mais efetivo iluminar e limpar uma praça, e estimular sua ocupação pela comunidade e pelo poder público, via secretarias de cultura e esportes. Os exemplos são inúmeros e cotidianos. Esse é o espírito do trabalho preventivo a serviço dos cidadãos, garantindo direitos. Esse é o método que já se provou superior. Mas tudo isso requer uma organização horizontal, descentralizada e flexível. Justamente o inverso da estrutura militar. ‘E o controle interno?’, alguém arguiria.

Engana-se quem supõe que a adoção de um regimento disciplinar draconiano e inconstitucional seja necessária. Se isso funcionasse, nossas polícias seriam campeãs mundiais de honestidade e respeito aos direitos humanos. Eficazes são o sentido de responsabilidade, a qualidade da formação e o orgulho de sentir-se valorizado pela sociedade. Além de tudo, corporações militares tendem a ensejar culturas belicistas, cujo eixo é a ideia de que a luta se dá contra o inimigo. Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo interno, não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e negro. Uma polícia ostensiva preventiva para a democracia tem de cultuar a ideia de serviço público com vocação igualitária e radicalmente avessa ao racismo.

A militarização da polícia justifica o seu comportamento? Uma vez desmilitarizada, qual seria o passo seguinte, uma vez que a corporação será a mesma?

Como disse, respondendo à primeira pergunta, desmilitarizar é apenas uma das mudanças indispensáveis. Isolada, cada uma delas será insuficiente. E não nos iludamos: toda reforma institucional da segurança pública será somente um passo numa caminhada mais longa e difícil, rumo à construção de uma sociedade efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos, na qual a justiça mereça o nome que tem. A sociedade em seu conjunto terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial, aplaudindo execuções, elegendo políticos que defendem o direito penal máximo e governos que acionam a violência do Estado. As transformações, um dia, terão de incluir a legalização das drogas, que considero uma mudança fundamental. No momento, contudo, o que está em questão, e com máxima urgência, é salvar jovens negros e pobres do genocídio, é acabar com as execuções extra-judiciais, as torturas, a criminalização dos pobres e negros, é reduzir o número inacreditável de crimes letais intencionais, é suspender o processo de encarceramento voraz, que atinge exclusivamente as camadas sociais prejudicadas pelas desigualdades brasileiras, é sustar a aplicação seletiva das leis, que vem se dando em benefício das classes sociais superiores, dos brancos, dos moradores dos bairros afluentes de nossas cidades. Portanto, nada de idealizações ao avaliar as reformas propostas. O que não significa que cada passo não seja de grande relevância e mereça todo empenho de quem se sensibiliza com a tragédia nacional, nessa área, tão decisiva e negligenciada.

Historicamente, tivemos momentos em que a luta pela desmilitarização da polícia aparece, como na promulgação da Constituição de 1988. Por que ela não aconteceu?

Não houve comprometimento suficiente das forças mais democráticas, a sociedade não se mobilizou, os lobbies corporativistas das camadas superiores das polícias se mobilizaram, as forças conservadoras se uniram e funcionou a chantagem dos antigos líderes da ditadura, em declínio, mas ainda ativos. Nas jornadas de junho de 2013, e em seus desdobramentos, a brutalidade policial, que era e continua a ser cotidiana nos territórios populares, chegou à classe média e chocou segmentos da sociedade que antes ignoravam essa realidade ou lhe eram indiferentes. A esperança reside na continuidade dos movimentos sociais, que adquiriram novo ímpeto, e em sua capacidade de pautar esse debate e incluí-lo na agenda política. Não vai ser fácil. Mas tampouco será impossível. Abriu-se para nós, pela primeira vez, uma temporada de frestas.

Existem diversos projetos em tramitação para a desmilitarização da polícia: um proposto pelo senador Blairo Maggi, outro do ex-deputado Celso Russomanno, e o mais recente proposto pelo senador Lindbergh Farias, sob sua consultoria, a chamada PEC-51. No que eles se diferenciam?

Há mais de 170 projetos no Congresso Nacional propondo a reforma do artigo 144 da Constituição. Vários incluem a desmilitarização. Nenhuma proposta de emenda constitucional é tão ousada e completa quanto a PEC-51. Nenhuma incorporou 25 anos de militância, experiência, debate e pesquisas, ouvindo profissionais das polícias e da universidade, operadores da justiça e protagonistas dos movimentos sociais, e buscando o denominador comum. Isso não significa unanimidade. Há interesses contrariados e haverá resistências corporativistas, assim como posições ideológicas em oposição. Entretanto, o envolvimento de muitos movimentos, inclusive de policiais, já indica seu potencial para construir um consenso mínimo e sensibilizar a sociedade. 70% dos profissionais da segurança querem a mudança, como pesquisa de que participei demonstrou, em 2010. Não necessariamente querem a mesma mudança, mas o reconhecimento da falência do modelo atual é, em si mesmo, significativo.

Você ajudou a formular a PEC –51. Como foi isso e quais são as expectativas?

A PEC-51 visa reformar não apenas as PMs, desmilitarizando-as, mas o próprio modelo policial, atualmente baseado na divisão do ciclo do trabalho policial: uma polícia investiga, outra faz o trabalho ostensivo preventivo. Pretende também instituir carreira única em cada polícia e transferir aos estados o poder de escolher o modelo que melhor atenda suas peculiaridades, desde que as diretrizes gerais sejam respeitadas. Hoje, em cada estado, as duas polícias, civis e militares, na verdade são quatro instituições ou universos sociais e profissionais distintos, porque há a polícia militar dos oficiais e dos não oficiais (as praças), a polícia civil dos delegados e dos não-delegados como, por exemplo, os agentes, detetives, inspetores, escrivães etc. A PEC propõe que o ciclo de trabalho policial seja respeitado e cumprido em sua integralidade, por toda instituição policial. Ou seja, toda polícia deve investigar e prevenir.

Propõe também a carreira única no interior de cada instituição policial. E propõe que toda polícia seja civil. A transição para o novo modelo, caracterizado pelo ciclo completo, a carreira única e a desmilitarização, uma vez aprovada a PEC, dar-se ia ao longo de muitos anos, respeitando-se todo direito adquirido de todos os trabalhadores policiais, inclusive, é claro, dos que hoje são militares. O processo seria conduzido pelos estados, que criariam suas novas polícias de acordo com suas necessidades. A realidade do Acre é diferente da de São Paulo, por exemplo. A transição seria negociada e levada a cabo com transparência e acompanhamento da sociedade. As polícias seriam formadas pelo critério territorial ou de tipo criminal, ou por combinações de ambos. Um exemplo poderia ser o seguinte: o estado poderia criar polícias sempre de ciclo completo, carreira única e civis – municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo, previstos na Lei nº 9.099; uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra, por exemplo, os homicídios. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da combinação dos critérios referidos.

domingo, 25 de março de 2012

A necessária e urgente desmilitarização das atividades policiais

Elucidativo artigo de Maria Lucia Karam, membro da AJD e Juíza de direito aposentada no RJ.



O policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, funções atribuídas às polícias militares estaduais na regra do § 5º do artigo 144 da Constituição Federal brasileira, são atividades típicas de polícia, que não se coadunam com a organização militarizada imposta pela distorcida previsão (no § 6º do mesmo artigo) de tais polícias como forças auxiliares e reserva do Exército.

A estruturação das polícias estaduais em organizações diferenciadas ainda cria desuniões e competições, acabando por afetar negativamente a própria efetivação da segurança pública. Emenda constitucional que promova a reestruturação das polícias militares e sua unificação com as polícias civis decerto se faz necessária e urgente.

A desmilitarização das atividades policiais não pode se limitar, porém, a essa indispensável reestruturação e unificação das polícias estaduais. A necessária e urgente desmilitarização requer uma nova concepção das ideias de segurança e atuação policial, que, afastando o paradigma bélico, resgate a ideia do policial como agente da paz, cujas tarefas primordiais sejam a de proteger e prestar serviços aos cidadãos.

A prevalência dessa nova concepção não depende apenas de transformações internas nas polícias e na formação dos policiais. Há de ser, antes de tudo, adotada pela própria sociedade e exigida dos governantes.

No entanto, mais grave do que a existência de uma polícia militarizada no Brasil é a atuação das próprias Forças Armadas que, em claro desvio das funções que a Constituição Federal A necessária e urgente desmilitarização das atividades policiais lhes atribui, vêm sendo utilizadas em atividades policiais. O cenário do tão incensado novo modelo de policiamento iniciado no Rio de Janeiro – as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) – inclui tanques de guerra e militares com fuzis e metralhadoras, seja na ocupação inicial, como na Rocinha e no Vidigal, seja, como no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro, em que essa presença vai se tornando permanente, o Exército estando ali estacionado desde novembro de 2010.

Sob o pretexto de “libertar” as favelas dos “traficantes” de drogas, esse novo modelo de policiamento consiste na ocupação militarizada dessas comunidades pobres, como se fossem territórios “inimigos” conquistados ou a serem conquistados. No momento inicial da ocupação, chega-se até mesmo a hastear a bandeira nacional, em claro símbolo de “conquista” do território “inimigo”. A ocupação fortalece o estigma e a ideia do gueto. A ocupação sujeita as pessoas que vivem nas favelas a uma permanente vigilância e monitoramento, com frequentes revistas pessoais até mesmo de crianças por agentes fortemente armados, com revistas domiciliares sem mandado (ou com algum vazio e igualmente ilegítimo mandado genérico).

A ocupação funciona como uma espécie de “educação” para a submissão. Sabendo-se e sentindo-se permanentemente vigiado, o indivíduo acaba por se adestrar para a obediência e a submissão à ordem vigente. O indivíduo permanentemente vigiado acaba por reprimir suas opiniões, por mudar seus hábitos, por ter medo de ser diferente, de questionar, acaba por se conformar aos padrões dominantes, acaba por aderir à submissão. Aliás, nos “guetos” denominados favelas, sob ocupação, qualquer manifestação de inconformismo de moradores, quaisquer denúncias de abusos acabam por ser esqualificados, sob a fácil alegação de que os autores dos questionamentos estariam ligados aos “traficantes”.

A proibição das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas é o motor principal da militarização das atividades policiais. O paradigma bélico, explicitamente retratado na expressão “guerra às drogas”, faz do “criminoso” o “inimigo”. Em uma guerra, quem deve “combater” o “inimigo”, deve eliminá--lo. Os policiais brasileiros são, assim, formal ou informalmente autorizados e mesmo estimulados, por governantes e por grande parte da sociedade, a praticar a violência, a tortura, o extermínio. Basta pensar que o “cinematográfico” Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro tem como símbolo uma caveira.

A “guerra às drogas”, motor da militarização das atividades policiais, não se dirige efetivamente contra as drogas. Como qualquer guerra, não é uma guerra contra coisas. Como qualquer guerra, é uma guerra contra pessoas – os produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas substâncias tornadas ilícitas. Mas, é ainda mais propriamente uma guerra contra os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, não-brancos, marginalizados, desprovidos de poder, como os vendedores de drogas do varejo das favelas, demonizados como “traficantes”, ou aqueles que a eles se assemelham, pela cor da pele, pelo local de moradia, pelas mesmas condições de pobreza e marginalização.

Os homicídios, travestidos em “autos de resistência”, praticados por policiais em operações nas favelas no Rio de Janeiro – em média, 20% do total de homicídios no estado – não deixam dúvida sobre quem são os “inimigos” nessa guerra.

Passo primordial e urgente para uma efetiva desmilitarização da atividade policial, para afastar o paradigma bélico da atuação do sistema penal, é, pois, a necessária e urgente mobilização para pôr fim à “guerra às drogas” e substituir a proibição por um sistema de legalização e conseqüente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.


*Maria Lucia Karam, membro da AJD, é Juíza de direito aposentada no RJ, membro da direção da Law Enforcement Against Prohibition
(LEAP) [www.leap.cc e www.leapbrasil.com.br]

sábado, 18 de fevereiro de 2012

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

VEJA quer calar a democracia

Excelente artigo de Marcelo Semer*, Juiz de Direito em SP, sobre Veja e os ataques desvairados de Reinaldo Azevedo.



Tolice suprema, coleção formidável de bobagens, condoreirismo cafona.
Com esses e outros adjetivos ainda piores, o jornalista Reinaldo Azevedo iniciou, em seu blog, uma onda de ataques da revista VEJA à Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Nos posts que buscavam detonar a associação por uma nota crítica à ação da Polícia Militar na USP, sobrou até para os educadores que seguem Paulo Freire: "idiotas brasileiros e cretinos semelhantes mundo afora".
O nível do artigo já se responde por conta própria.

Todavia, na edição impressa que veio às bancas no sábado último, o editor-executivo da revista subscreveu um texto que, sem qualquer constrangimento ou escrúpulo político, comparou a associação a um tribunal nazista.

O descompromisso com a razão nem é o que mais ressalta no artigo - a foto gigantesca de pupilos de Hitler, fora de tom ou propósito, só se explica como um ato falho. No artigo, Carlos Graieb utiliza expressões que se encaixariam perfeitamente no ideário nazista: propõe dissolver a associação "política" ou impedir que seus membros usem a toga.

Reinaldo Azevedo, com ainda menos pruridos no mundo virtual, explicitou, numa ação que evoca o macarthismo, os nomes de todos os diretores, representantes e membros de conselhos da entidade, alertando leitores para que jamais aceitem ser julgados por estes juízes.

Que competência ou legitimidade para a posição soi-disant de corregedor ele tem não se sabe. Mas seus seguidores foram instados a identificar os juízes associados pelo próprio colunista, que deu status de artigo a mensagem de um advogado falando do desembargador 'liberal' apreciador de samba.

VEJA está aturdida e indignada com a afirmação de que existe direito além da lei. Os nazistas também ficavam, porque as barbáries escritas no período mais negro da história da humanidade eram legais. Jamais deixaram de ser barbáries por causa disso.

A prevalência dos princípios constitucionais é o que propunha, sem grandes novidades, a nota da Associação Juízes para a Democracia. Se juízes não podem fazê-lo em um estado democrático de direito, na tutela da Constituição que prometeram defender, algo definitivamente está errado.

Mesmo para quem conhece a linha editorial de VEJA, cuja partidarização na política é sobejamente criticada, espanta que o interesse em calar quem pensa de outra forma, parta justamente de um órgão de imprensa.
Que a falta de pluralismo de suas páginas já fosse, por assim dizer, um oblíquo atentado à liberdade de expressão, o explícito intuito de extirpar opiniões contrárias não deixa de ser aterrorizador. Sob esse prisma, lembrar o nazismo não é mais do que medir o outro com a própria régua.

A Associação Juízes para a Democracia tem vinte anos de serviços prestados ao debate institucional na magistratura e fora dela - e eu me orgulho de fazer parte dessa história quase por inteiro.
A AJD tem entre seus objetivos o respeito incondicional ao estado democrático de direito e jamais deixou de denunciar quando este se fez ameaçado. Bate-se sem cessar pela independência judicial e é militante na consideração do juiz como um garantidor de direitos.

A promoção permanente dos direitos humanos, compartilhada com inúmeras outras entidades da sociedade civil, sempre incomodou aos que se candidatam a porta-voz dos poderosos. Mas recusamos o propósito de quem quer fazer da democracia apenas uma promessa vazia.

A associação nunca se opôs a criticar o elitismo no próprio Judiciário, nem temeu se mostrar favorável à criação de um órgão para exercer o controle externo. Tudo por entender que desempenhamos, sobretudo, um serviço essencial ao público - o que levou a AJD a participar da Reforma do Judiciário propondo, entre outros temas, o fim das sessões secretas e das férias coletivas.

Anticorporativista, a associação jamais defendeu valores em benefícios próprios, o que pode ser incompreensível em certos ambientes. Recentemente, bateu-se pela legalidade da instauração de processos administrativos contra juízes pelo Conselho Nacional de Justiça, na contramão de interesses de classe.
Em vinte anos, seus membros têm sido convidados a participar de vários debates no Poder Judiciário, no Congresso Nacional e também na mídia.

O exercício contínuo da liberdade de expressão, que fascistas de todo o gênero sempre pretenderam mutilar, não vai ceder ao intuito de quem pretende impor sua visão e seus conceitos como únicos.
VEJA não está em condições de ensinar estado de direito, se desprestigia a liberdade de expressão.



* Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo